A INVENÇÃO DE MOREL - ADOLFO BYOU CASARES - Resenha

A INVENÇÃO DE MOREL - Adolfo Byou Casares
by Rômulo Giacome
Muitos têm oportunidade de ler grandes obras clássicas. Obras de Machado de Assis e sua trilogia “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” e “Dom Casmurro”. Obras palatáveis, até compreensíveis ao ponto de vista do leigo iniciante no mundo da literatura. Mas existe um patamar acima de leitura. Um patamar, polêmico eu sei, mas que do ponto de vista do leitor depreende mais esforço, mais trabalho, paciência e energia intelectual. É o caso de minhas experiências com Guimarães Rosa. Grande Sertão Veredas foi meu grande desafio. Demorei dois anos para ler e quando terminei, senti uma lacuna, como se a obra pudesse me dizer mais. O início da estória estava ficando cada vez mais distante; a trama central era simples, mas os enleios psicológicos, filosóficos e verbais me fizeram tatear pelas palavras como em um limbo de compreensão. Faltou alguma coisa, mensagem que nunca estará completa, pois Grande Sertão é um enigma perfeito, uma obra literária modular e que nunca será esgotada. Um nível semelhante entendo e sinto em Jorge Luís Borges. Sua literatura fantástica é fascinante. Criar histórias, construir mundos ficcionais, universos que se confrontam com a realidade, se multiplicam e se coadunam, como em uma espiral criativa é algo grandioso. Adolfo Byou Casares está neste plano. Em um nível superior de leitura, quase contemplativa. A invenção de Morel é uma etapa que todo leitor experiente ou não deve empreender para entender realmente a boa literatura.
A leitura de toda obra latina, de verve fantástica, exala um ritual e até mesmo uma liturgia por sobre o real valor da palavra e da trama, re-conhecida pela sua construção criativa e potencialmente ampla.
São cascatas de novas formas, cores e ações, desenroladas por sobre uma verossimilhança ímpar, traçada com detalhes fantásticos. Personagens personalíssimos, criativos e cheios de temperamentos e excentricidades.
A linhagem dos fantásticos latinos, tais como Gabriel Garcia Marques, Vargas Llosa, Júlio Cortazar, além de Borges e Adolfo Byou Casares é construir e montar grandes estórias, estórias prodigiosas, interessantes, trafegando entre os limites da realidade e a da ficção, enriquecendo nosso universo ficcional. Portanto, tropos literários como espelhos, sonhos, imagens, projeções, textos em jornais que não existem, matérias em revistas que supostamente foram lançadas, diários que supostamente foram escritos, decidem a literariedade a partir do “se”, destituindo de importância a realidade factual e a invenção, tendo em vista que esta última é sempre mais interessante.
Na invenção de Morel a perspectiva criativa perpassa pela primeira pessoa narrada por um possível diário, onde o personagem é um fugitivo da polícia que se esconde em uma ilha deserta. Por se tratar de um diário, as informações podem ou não ser verdadeiras, assim como outras pessoas podem ter manipulado aquelas informações, o que acaba surgindo copiosamente a partir das notas do editor, “implantadas” por ali.
A questão é que esta obra é um scien fie brilhante, escrita em 1967 e lida até hoje com prazer.
Em uma ilha aparentemente deserta, algumas construções humanas se avolumam: uma pequena igreja, um museu, um hotel e uma piscina. Sobrevivendo escondido, sempre a espreita, este solitário morador da ilha se depara com o isolamento das dependências, abandonadas, e com uma casa das máquinas aparentemente intacta; supostamente aqueles motores captariam o trabalho das ondas e forneceriam energia, o que realmente ocorreu quando colocados em funcionamento.
A partir dali, um grupo de pessoas chegaram/surgiram na ilha e iniciaram sua hospedagem. Uma alta espanhola, diariamente, no mesmo horário, vinha tomar sol próximo à praia. O que promoveu uma paixão repentina no solitário fugitivio. Estra paixão, aliado às reflexões e loucuras adjacentes que são descritas no diário, são cruciais para entender os motivadores que fizeram com que o fugitivo tentasse uma aproximação. Este grupo sofisticado permanecia até altas horas bebendo e conversando
O nosso fugitivo da justiça, voz que aparece pelo diário encontrado anos depois, narra seu desespero morando nos baixios alagados, seus sobressaltos quanto das marés mortíferas que assolam determinados dias. Mas o que mais intriga o personagem – diário é a existência daquelas pessoas. Em um pequeno momento de análise mais lúcida, nosso fugitivo compara a antiga piscina, lotada de sapos e cobras, enegrecida pelo musgo, com esta que lhe se apresentou em milésimo de segundos, limpa, clara e refrescantes, onde os habitantes recém surgidos do nada se divertem.
Aqueles habitantes que apareceram por ali, naquela ilha deserta e distante, seriam projeções da mente debilitada do habitante solitário da ilha? Estas projeções seriam fruto das raízes e folhas que ele consumia? O tempo ia passando e a presença dos turistas e suas diversões noturnas e diurnas tornavam-se comuns e corriqueiras ao nosso observador. No entanto, não existia comunicação entre o observador e seus turistas. Pareciam que não o viam, que estava morto ou invisível. A adoração pela espanhola ia aumentando, ao ponto de tentar um diálogo, fato vão. Nesta plataforma ficcional, Casares introjeta a condição da dúvida, que perpassa por todos os questionamentos possíveis: estavam mortos e eram espíritos? O fugitivo solitário que nos conta a estória está morto? São delírios de um ermitão já doente pela solidão?
A perfeição milimétrica da narração de Casares sincroniza a possibilidade de ler a obra duas ou três vezes em busca das pegadas desta situação. Desde o momento onde os turistas surgiram até a reiteração das mesmas cenas, dos mesmos atos dos habitantes festivos, das mesmas conversas com os mesmos conteúdos. Esta repetição cíclica possui uma trajetória narratológica paralela à narração principal, que é deixada como rastros pelo decorrer da leitura.
Mas “A invenção de Moreau” é uma obra de ficção científica, onde a matéria e a tecnologia são decodificadoras das inquietações. A grande descoberta e sagacidade da trama é a própria invenção do doutor Moreau, um daqueles turistas efusivos e contentes, que conta sua invenção e posição filosófica sobre os amigos. O que acontecia na ilha eram experimentos científicos. Experimentos que buscavam captar a própria vida e eternizá-la por meio das imagens e sons sincronizados. As projeções eram repetições das ações dos turistas, registradas em um imenso disco que era colocado em movimento pelo balanço das marés. Apriosionadas no disco, as imagens, movimentos e sons das pessoas eram repetidas initerruptamente, revivendo a condição de existência, simulando e tornando o ser presente neste plano.
Casares é um gênio. Ele propõem um olhar transgressor sobre a reprodução e reprojeção da existência a partir da tecnologia. Nossas fotografias e filmagens são parte de nossa existência real neste plano? A vida pode ser apriosionada e captada, sendo retida permanece “vida”?
A Invenção de Moreau é a viagem mordaz a uma ilha abandonada e perdida, onde a vida simulada e projetada procura vencer a morte, inundando o ambiente pelos auto falantes e projetores. É um local misterioso, marcado por descobertas que devem acontecer, mas também pela presença fantasmagórica da solidão.
Uma obra imperdível.

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